quarta-feira, 17 de junho de 2009

Resenha do novo livro de Mumia Abu-Jamal


[“Só quero contar uma história que nunca foi contada”, diz Mumia Abu-Jamal sobre seu novo livro: Jailhouse Lawyers: Prisoners Defending Prisoners v. the U.S.A. (Advogados Desde a Prisão: Presos que Defendem Presos vs. os Estados Unidos), City Lights Books, 2009.]

O sexto livro escrito por Mumia Abu-Jamal desde o corredor da morte é publicado justamente no momento em que a Suprema Corte dos Estados Unidos lhe fecha a porta na cara, rejeitando um pedido de recurso de Mumia para que fosse repetida a fase do veredito do seu
julgamento de 1982,
 e a campanha para executá-lo novamente se renova. O livro foi apresentado em 24 de abril na Filadélfia, Nova York, Oakland, Detroit, Boston, Houston, Portland, Los Angeles, Seattle, Olympia, Baltimore e Washington D.C., para festejar seu aniversário e abrir uma nova etapa na batalha por sua vida e liberdade.  

Conta-nos que existem dezenas de milhares de presos advogados nas prisões dos Estados Unidos. Pouco conhecidos no mundo fora dos muros, são homens e mulheres que demandam seus próprios casos, defendem outros presos ou levantam ações para efetuar mudanças nas condições das prisões. Com agudeza, respeito, empatia e humor, Mumia apresenta as palavras e vivências de uma trintena deles, alguns que ele conheceu pessoalmente nas prisões da Pensilvânia e outros que lhe têm enviado cartas ou respostas a suas pesquisas.  A maioria, batalha em terreno alienígena, porque  não tiveram estudos formais em Direito antes de ingressar na prisão; são autodidatas e têm aprendido a lei sob a tutoria de outros presos com mais experiência.

Diz Mumia: “Não se tem se esquecido de lutar. Não se tem se esquecido de resistir. Não se tem se esquecido de ajudar aos demais, em muitos casos as pessoas mais indefesas. E não se tem se esquecido de ganhar... Algumas destas pessoas têm salvado a vida de outras, literalmente. Outras têm mudado as regras do jogo”. Para agradecer-lhes seus serviços em proteger a Constituição, as autoridades freqüentemente castigam estes advogados mais que a qualquer outro grupo de presos.

Neste livro, conhecemos Steve Evans, que estudou direito por conta própria e ensinou muitos outros presos como disputar um caso – a todos, menos os informantes e violadores de crianças. Seu aluno Warren Henderson teve que aprender a ler na prisão, antes de estudar Direito, mas tão grande era sua paixão para a leitura que roubou centenas de livros para realizar seu sonho de organizar uma biblioteca em seu bairro ao sair da prisão, e em várias ocasiões teve êxito em defender-se. Midge DeLuca, que sofria de câncer, decidiu ajudar as outras presas doentes depois de ler uma linha de sua poetisa favorita, Audre Lorde: “Só nossos silêncios nos lastimarão”.

Também tomamos conhecimento de vários rebeldes, revolucionários e presos políticos, inclusive os integrantes e simpatizantes da organização MOVE, que desafiaram a autoridade dos Tribunais rotundamente em uma longa série de julgamentos; Rashaan Brooks-Bey, organizador de greves e outras ações pelos direitos dos presos, que junto com seus companheiros Russell Maroon Shoatz, Robert Joyner e Kareem Howard, enfrentaram o juiz diretamente e exigiram a prisão dos policiais; Martin Sostre, o legendário organizador da livraria Afro-Asiática em Buffalo, NY, que influenciou no pensamento de muitos outros presos; Iron Thunderhorse, batalhador incansável pelos direitos dos presos, agora, cego;   e Ed Mead,  originalmente um preso social que se tornou ativista pelos direitos dos presos, depois integrante da Brigada George Jackson e co-fundador da Prison Legal News.

Diante do desprezo dos juízes e promotores, da extrema falta de recursos, e da apatia pública, os advogados, desde a prisão, freqüentemente perdem seus casos, mas também tem alcançado impressionantes vitórias.

  -- No estado da Pensilvânia, Richard Mayberry começou suas batalhas para se auto-representar em meados dos anos 60, e apesar dos duros castigos em função disso, teve que ultrapassar alguns obstáculos para fazê-lo. Também ganhou uma causa em 1978, que resultou em drásticas mudanças nas prisões de vários estados no campo da saúde, superlotação e banimento de castigos, como as “jaulas de vidro”, entre muitas outras coisas.

  -- Em 1971, David Ruiz levantou uma ação contra o sistema carcerário do estado do Texas, operado como uma plantação de escravos, que resultou em extensas reformas ordenadas pelo juiz William Wayne Justice.

  -- Na Pensilvânia no princípio dos anos 80, uma ação apresentada por Rashaan Brooks-Bey de parte de todos os presos conseguiu que uma unidade repressiva fosse fechada na prisão de Pittsburgh. Os presos ganharam duas horas de exercício ao ar livre em lugar de quinze minutos, serviço de lavanderia, tampas para as bandejas de comida, e uma proibição da prática de desnudá-los quatro vezes a cada vez que recebessem visitas.

-- No estado da Califórnia, Jane Dorotik moveu apelações que resultaram na liberdade de um bom número de mulheres falsamente presas na penitenciária de Chowchilla. Seu caso está destacado em um capítulo dedicado ao trabalho de várias presas advogadas ante o tremendo aumento de encarceramento de mulheres, 300% em anos recentes.

-- Barry “Running Bear” Gibbs  (o Osso) conseguiu que sua própria sentença de morte fosse revogada, igualmente as de outros dois presos. Recorda-se de como se sentiu quando um dos jovens lhe contou as boas noticias. Disse Osso: “Salvar a vida de alguém por meio de tinta e papel é uma experiência gratificante e inesquecível”.

-- A vergonhosa condenação de  9 dos integrantes da organização MOVE, desde 30 a 100 anos de prisão em 1978, foi seguida por una assombrosa vitória para a organização em 1981, quando Mo e John África se defenderam com êxito contra acusações de posse de armas e explosivos. Suas táticas pouco comuns incluíram uma intimação a seus 9 companheiros presos para dar depoimentos sobre os propósitos de sua luta, o bom caráter de John África e a traição das testemunhas de acusação, mais um discurso final de John África sobre a beleza e a sobrevivência da Mãe Terra. O jurado, com lágrimas nos olhos, os inocentou completamente.

--Uns meses depois, o simpatizante do MOVE, Abdul Jon, conseguiu a revogação temporária das acusações de agressão com lesões contra ele, Jeanette e Theresa África, quando foram eles os que sofreram uma brutal agressão da polícia. Seus argumentos sinceros e lógicos tornaram risíveis os altissonantes (e falsos) argumentos da promotoria. Ainda que fosse uma vitória menor, conta Mumia, dá o sabor da longa série de processos contra o MOVE.

Mumia assinala a ironia de que ainda que John África fosse absolvido por um jurado da posse de armas e explosivos, ele foi assassinado em 13 de maio de 1985, junto com Theresa África e outros 9 integrantes do MOVE, com explosivos obtidos ilegalmente pelo governo dos Estados Unidos  para bombardear a casa coletiva do MOVE. Sem dúvida, nenhum agente local ou federal foi julgado pelo crime. A única pessoa acusada, julgada e condenada a 7 anos por “incitar um motím” foi Ramona África, que “se atreveu a sobreviver a matança.” Se não houvesse movido seu próprio caso,  provavelmente teria passado muitos anos mais na prisão, dadas todas as acusações iniciais contra ela.

Para Mumia, não cabe dúvidas de que, ao fim e ao cabo, a lei é o que diz o juiz. Em um capítulo interessante, explora várias definições da lei, inclusive a do homem conhecido como “o avatar do capitalismo ocidental”, Adan Smith: “A lei e os governos podem se considerar... como uma combinação dos ricos para oprimir aos pobres  para conservar para eles a desigualdade dos bens, os quais de outra maneira estariam destruídos pelos assaltos dos pobres, aqueles, que se não fossem impedidos pelo governo, muito rapidamente reduziriam aos demais a uma igualdade com eles através da violência aberta”.

Sem dúvida, para os presos, a lei não é uma teoria ou uma idéia, porque vivem a brutal realidade. Alem disso, os que conhecem a história afro-americana nos Estados Unidos sabem que milhões de pessoas foram escravizadas legalmente. Houve leis distintas para os Africanos chamadas “Códigos de Escravos”, os quais reapareceram depois da Guerra Civil como “Códigos Negros” que penalizaram condutas como a vagabundagem, posse de armas, ausência de trabalho, gestos ou atos insultantes. Mumia sustenta que precisamente porque os advogados, desde a prisão, haviam desafiado a utilização da lei como instrumento de dominação, o ex-presidente Bill Clinton, em 1996, efetivou a aprovação de uma lei que limita os direitos dos presos para encaminhar apelações ou ações, e proíbe as indenizações punitivas por danos e prejuízos psicológicos ou mentais, em violação da Convenção Contra a Tortura. Aos “Códigos de Escravos” e aos “Códigos Negros”, comenta Mumia, se somam agora os “Códigos de Prisão”.

Naturalmente, o livro revela muitos aspectos das condições nas prisões dos Estados Unidos, inclusive a tortura praticada ali: “O que milhões de pessoas vimos nas reflexões espeluzantes do Iraque não era outra coisa que uma edição exterior da realidade das prisões estadunidenses: lugares de tortura, humilhação e abuso -práticas exportadas dos infernos domésticos deste país a outros no estrangeiro”.

Em que se distinguem os advogados licenciados em Direito e os advogados da prisão?  O conservadorismo inerente a profissão, explica Mumia, se remonta aos dias quando os licenciados eram vistos como instrumentos da Coroa Britânica que só trabalhavam para os ricos. “Dos 56 homens que firmaram a Declaração de Independência (nenhuma mulher assinou) em 1776, 29 deles, ou aproximadamente 52 por cento, eram advogados ou juízes. Estabeleceram uma estrutura legal que protegia a propriedade, mas que depreciava a liberdade -pelo menos a liberdade do povo africano escravizado. Os advogados trouxeram com eles uma sensibilidade que está no coração da profissão, um conservadorismo inato”. De fato, os três primeiros presidentes de Estados Unidos eram aristocratas, ainda que sem título, e donos de escravos. “Estabeleceram uma estrutura legal para proteger a riqueza e o privilégio de sua classe”.

Hoje em dia quando os advogados se apresentam, não são “oficiais da comunidade”, se não “oficiais da corte”. Sua lealdade não é ao acusado se não “a corte, ao banco, ao trono civil”. Isto explica, em parte, a grande distância entre o licenciado e seu cliente e a falta de confiança que o cliente lhe tem. É quase impossível que uma pessoa pobre tenha um bom advogado e ainda más difícil quando o acusado não seja branco.

Os advogados desde a prisão, sem dúvida, têm uma relação diferente com o Estado. Em uns casos, até os advogados muito progressistas têm tomado o lado do Estado contra eles. Esclarece Mumia que em  meio a histeria pós 9/11 sobre o anthrax, vários estados aprovaram leis que permitiram ao Estado abrir correio legal sem contar com a presença dos presos, em violação da Primeira Emenda da Constituição. A medida foi negociada com o apoio da liberal União Americana de Liberdades Civis (ACLU), mas, por fim, revogada graças aos duros esforços de três advogados desde a prisão -Derrick Dale Fontroy, Theodore Savage, e Aaron C. Wheeler. Por outro lado, é raro que os advogados desde a prisão negociem um caso. Não têm lealdade à corte, não são licenciados, e não têm ninguém a quem vender-se. Não são parte do “clube”.

Com todo o apreço que Mumia têm aos advogados retratados neste livro, ele também assinala  os limites de seus esforços. Aos finais dos anos 70, Delbert África lhe havia avisado de uma perigosa armadilha. Explicou-lhe que o problema reside em que muitos destes presos estudam a lei, acreditam na lei, acreditam que se aplica a eles, e quando se dão conta que o Sistema não segue suas próprias leis, que, ao contrário, a lei se faz e se rompe de acordo com o desejo dos juízes, enlouquecem.

Mumia afirma haver conhecido uns presos que enlouqueceram precisamente por esta razão. Também conheceu uns que tem abusado dos presos que representam. Sem dúvida, o limite mais forte que ele assinala é a insuficiência de seus bons esforços para conseguirem mudanças fundamentais no sistema carcerário. Para acabar com este sistema, qualquer esforço para utilizar a lei contra o poder têm que ser parte de amplos movimentos dentro e fora das prisões para transformar a sociedade.

Humilde, como sempre, Mumia apenas menciona seus próprios esforços como advogado autodidata que tem ajudado a outros presos a sair da prisão. Um deles é Harold Wilson, que escolheu o nome Amin e agora participa na campanha para libertar Mumia Abu-Jamal. Foi um dos convidados a falar no evento de 24 de abril passado na cidade de Nova York.


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